O que está acontecendo na relação aluno-professor?

Sim, está errado, a professora que chamou o aluno de “macaco” numa escola de São Gonçalo não podia fazer isso. Racismo é um problema tão óbvio que só entendo que acaba tendo que ser considerado crime porque sempre há um grande número de pessoas sem noção que mantém o ranço burro de nossos antepassados. Racismo não pode, não faz sentido, atrapalha não somente a vítima, mas a sociedade inteira, gera retrocesso e pode impedir ou desacelerar o desenvolvimento de benefícios até mesmo para o sem-noção que perpetra o ato.

O acontecido, porém, chama a atenção para outros problemas tão graves quanto e que tem me parecido não serem vistos por quase ninguém, exceto aqueles que sofrem com ele, claro. São vários, mas como sou professor, posso perceber algo que tem acontecido justamente nas relações alunos-professores não é de hoje. Entre as motivações alegadas para o ato da professora, estaria o fato de que os alunos estavam jogando pingue-pongue nas mesas, devido a seu atraso. Bem, nada justifica o ato racista e não seria preciso também encrespar tanto por causa do pingue-pongue, ainda que sala de aula não seja lugar para isso. Tenho uma ex-aluna que é professora e que também flagrou alunos do ensino fundamental ou médio fazendo o mesmo em sala e, para quebrar a tensão, ela mesma jogou uma partida rápida com eles, para depois incluir o acontecido na própria aula. Genial! Conseguiu a adesão dos alunos e ainda passou a disciplina. Bom humor e flexibilidade conseguem milagres em termos educacionais. Ainda assim, chama a atenção o fato de que numa eventual admoestação por fazerem algo que não é lá muito cabível em ambiente de sala de aula, os alunos passem a desafiar os professores a ponto de despertarem uma fúria preconceituosa inaceitável. A professora do ato racista está bem errada, não resta dúvida, mas será que está tudo ok com a atitude dos alunos? Daqueles e de todos os demais de todos os níveis e escolas? Não com relação a racismo, mas com relação a respeito mútuo, algo não direcionado a uma etnia ou um credo, respeito mútuo no geral. Toda essa situação me sugeriu a reflexão que se segue e que vai para o outro lado, que não estamos vendo ou que vemos, mas não temos dado a devida atenção.

Como disse acima, não é de hoje que percebo essa complicação na relação aluno-professor. Muitos alunos parecem querer um enfrentamento/provocação a qualquer preço ou chamarem a atenção para si, por carência, ego inflado e vários outros motivos que a Psicologia, a Sociologia e a Antropologia podem ajudar a explicar. Outros têm terrível desinteresse ou uma infantilização que ocorre precisamente quando põem o pé na sala de aula. Não precisa ser criança ou adolescente, não precisa ser ensino público ou privado, não há distinção de nível escolar e nem de disciplina, seja no ensino fundamental e médio, seja nas faculdades, não importa se é de Humanas ou de Exatas, incluindo até mesmo as pós-graduações lato-sensu. Não vi isso ocorrer com essa frequência em mestrados e doutorados (na verdade, em stricto sensu, não vi ocorrer mesmo). Durante minha própria graduação, que foi feita em horário noturno, numa turma de “adultos”, onde a média de idade dos alunos ficava em torno dos 30 anos, tínhamos professores carismáticos que conseguiam, a custo, manter a atenção da turma, mas outros um pouco mais calmos, com voz mais baixa, não eram respeitados. Uma professora de História das Américas, excelente, por sinal, tinha que interromper suas falas inúmeras vezes diante de um falatório muito alto, às vezes gritaria, dos marmanjos e marmanjas. Algo digno de um jardim de infância, com a diferença de que a professora não tinha a alternativa de dizer “ai, ai, ai”, para os indisciplinados. Vergonha alheia, para dizer o mínimo. Quer dizer que se o professor não plantar bananeira, se vestir de palhaço ou fazer tudo o que os alunos desejam ou acham que deveria ser feito em sala ele não merece respeito e a disciplina não merece atenção? Quando o curso é pago pode haver, por exemplo, o raciocínio patronal e patriarcal de “estou pagando, você tem que fazer o que estou mandando ou o que eu quero”. Lamento dizer, mas NÃO é para professores fazerem tudo o que os alunos querem, nem para darem aula como acham, em suas subjetividades, que deveriam dar a todo custo. Não é para os professores facilitarem uma boa nota ou conceito apenas porque o aluno paga mensalidade. Ao contrário, é preciso que o aluno valorize o próprio dinheiro e deseje um crivo justo e firme do professor. Há quem queira dar jeitinho, dizendo que “os critérios de avaliação não ficaram muito claros”, até mesmo quando se deixa uma lista de critérios disponível e visível. Isso leva a deduzir que o problema não são os critérios utilizados, mas o desejo de galgar um degrau para o qual está claro que o aluno não se preparou para galgar.

teachers-now-and-thenAntes eu pensava que aquelas aulas em que os professores ficam sentados, falando baixo, atrás de uma mesa, cobrando os alunos pela matéria dada nas aulas anteriores e em livros recomendados para leitura, em que os alunos mantém o silêncio e se manifestam pedindo permissão ao professor e demonstrando que procuraram saber e têm dúvidas era coisa que só acontecia em filmes americanos. Ocorre que já dei aula em Portugal e, durante uma atividade de pesquisa na Inglaterra para meu doutorado, acompanhei quietinho uma turma de alunos num museu de Londres com seus professores e vi que aquilo que eu julgava serem apenas fantasias cinematográficas existe de fato. O problema lá só pode ser outro, porque o que vemos acontecer aqui em terras tupiniquins, sobretudo no Rio de Janeiro, onde estou, seria o inferno de qualquer professor europeu. Não, não se trata do velho clichê que diz que brasileiro é flexível e criativo e os europeus são rígidos e dados a seguir padrões sem questionamento. É uma questão de respeito mesmo. É que os europeus não têm desde pequenos aquele discurso de que fugir às regras é a norma, de que respeitar o outro e não tentar fazê-lo de idiota é ser idiota. Aqui, um grande contingente populacional pensa precisamente assim. “Se eu não for esperto e enrolar os outros, alguém me enrolará”. É desanimador ver que apesar de ter gente que não pensa assim, quando no coletivo, essas pessoas são suprimidas diante da onda de falsa esperteza, que não é senão falta de respeito e de solidariedade. Me soa como algo criminoso também essa cultura.

Alunos muito passivos não aproveitam muito bem as aulas, é preciso expressar as dúvidas, trazer contribuições. Tudo bem, um desconto para os tímidos e para quem tem outros problemas para se comunicar em grupo. Isso se resolve com tempo, treino, empatia e compreensão. Alunos que participam, são ativos, pedem para tirar as dúvidas, trazem leituras de casa, pedem que o professor traga à baila assuntos que lhes deixa curiosos, são muito bons e tendem a ser bem sucedidos nos cursos ou na vida profissional. Porém, alunos ativos demais, aqueles que não têm limites para seus egos, que querem contribuir (ou aparecer) em demasia, a ponto de tomarem conta da aula, de quererem que o professor construa suas formas de passar a disciplina do jeito deles e não do professor, por mais que tenham boas intenções, atrapalham. Muito! Manter admoestações constantes aos professores para que eles dêem suas aulas do jeito que o aluno quer sem que ele se adapte o mínimo ao modo do professor é também uma falta de respeito. Interferir no planejamento de um curso até pode ser feito sem problemas. Pode ser importante mexer um pouco numa estrutura que não ajuda. Mas interferir o tempo todo interrompe os procedimentos, consome tempo, quebra a rotina que foi planejada para promover a associação e combinação dos saberes. Ela foi pensada para facilitar essa articulação por pessoas que já passaram pelo que o aluno vai começar a passar e  já considerou, senão tudo, uma parte muito grande do que é necessário, já aparou arestas. Podem existir pontos não considerados que uma observação dos alunos ajuda a alterar, mas mesmo assim isso tem que ser feito com calma e respeitando o que é possível para professor, instituição e alunos naquele momento, não para apenas uma dessas partes. Já escrevi antes um artigo sobre isso: a coisa tem que ser via de mão dupla, com uma parte se aproximando da outra (vide exemplo da minha ex-aluna acima), mas se a parte que solicita o serviço do professor não se dignar a um ajuste ao professor ou à instituição que contrata para tanto, não há como prosseguir. Se duvidam disso, tentem contar uma história ou um filme para um amigo e este lhe interromper umas 20 vezes para falar de assuntos que não têm a ver com o que você está contando, lhe criticando o tempo todo porque você não está dando uma emoção teatral na sua narrativa. Será que você consegue concluir a narração? Será que o objetivo de fazer entender alguma coisa será atingido com essa interferência? Pois é, interferência demais não ajuda.

Há os alunos que acham que podem falar em qualquer tom com o professor ou fazer o que querem em sala, como se ele fosse seu amiguinho ou alguém da família. Confiança é uma coisa, confiança excessiva é outra bem diferente, se torna abuso. “Porra, você vai mandar a gente desenhar perspectiva? Porra, tu não fode com tua mulher não?”, já ouvi uma aluna dizer, aluna esta que, certa vez, ao chegar na sala da faculdade (universidade pública), encontrei deitada na mesa com as pernas abertas e outros alunos observando e que mesmo ao ser solicitada educada e bem humoradamente para retornar ao assento para iniciar a aula, resistiu e se manteve na posição até que um colega pediu para fazer o que eu solicitei. Reprovada. Lamento. Ou não… Mas não foi por me dizer barbaridades ou por mostrar as partes íntimas aos colegas, algo que ela deve cuidar por si própria, e sim por não ter conseguido atingir o que era pedido nos trabalhos valendo nota. Num outro caso, uma parte de uma turma, noutra faculdade (particular), fazia grande esforço para prestar atenção no que eu falava, mas estava difícil não exatamente por eu, talvez, ser um porre falando, mas porque o restante estava falando alto, conversando sobre qualquer coisa da festa que iria ser feita no fim de semana, enquanto um aluno pousava as pernas nas paredes, em volta de uma colega que acarinhava suas pernas. Não, não eram namorados, mas mesmo que fossem, cá entre nós… Nenhum desses dois casos acima veio de alguém oriundo de uma comunidade carente e sim de pessoas de classe média-alta. Como disse, não há distinção. Há aqueles que acham que devem tratar você como o ser mais incompetente do mundo ou como uma criança que eles, no topo de suas “sabedorias”, devem orientar com mão de ferro. Uma inversão do que ocorria no início do século XX. Deve ser karma de professores, acho. Vai ver que é porque os professores do passado eram violentos, havia a palmatória e coisa e tal… Agora seremos castigados por nossas “encadernações” anteriores de professores malvados. Esses alunos “sábios” insistem em dizer que o nível das aulas ou dos cursos está muito aquém do que deveria. Em grande parte, atualmente, isso é verdade. Há uma defasagem entre o que se pode obter pela Internet, por exemplo, com vídeos, textos e outros acessos que não haviam antes, e o que ocorre na maioria das salas de aula atualmente. Mas quando há essa integração entre os recursos mais modernos e as aulas tradicionais, quando há convites para aulas externas com atividades lúdicas e experiências que só são possíveis em locais específicos, não raro vejo as mesmas reclamações. Ou sou um péssimo professor, o que tenho minhas dúvidas quanto a concordar, já que estou há muitos anos fazendo isso e na base da recomendação, ou tem alguma coisa estranha na cabeça de alguns alunos, que só faltam tomar de suas mãos a batuta e montar a aula para você. O problema é que, ao dizerem que “a aula não está interessante”, dão a impressão de que sabem tudo do assunto ou que qualquer coisa que se faça diferente pode ser melhor. Quando lhes é solicitado que dêem eles mesmos as explicações do modo como acham que deveriam, não sai nada ou, quando sai, vem tão desinteressante quanto aquilo que criticam. Já vi acontecer algumas vezes. Pra falar a verdade, os alunos ativos que não egóticos, em geral dão aulas sensacionais, daquelas que dão gosto de ver, sem ter antes perturbado a expressão dos professores e a montagem dos cursos. Muita coisa é relativa mesmo, mas será que é só coincidência isso? Todas as vezes que tive essa experiência de uma crítica violenta de algum aluno ela veio de quem está muito mais preocupado com a forma do que com o conteúdo e não consegue, ele mesmo, fazer aquilo a que se propõe nem mesmo com um assunto que dominava antes de procurar o curso. Novamente, o problema não é a crítica, mas o modo como ela é feita, não raro com um “ah, você vai me desculpar, mas isso está básico”, como foi o caso de uma aluna que disse com todas as letras, após a frase acima, que o “Cubismo é cáqui”, após eu mostrar obras de Picasso da fase sintética, que é bem colorida. Aliás, tem quem ache que Picasso não desenhava nada, mas esquece que o sujeito antes de optar por obras conceituais, era um desenhista de mão cheia no sentido clássico do termo. Difícil, num caso desses, não pensar que o aluno é pretensioso e que só critica a altos brados para chamar a atenção, por carência, ego inflado e coisas do tipo. Da mesma forma, usar comparações desqualificadoras é atacar, não é criticar construtivamente. Às vezes a pessoa que o faz não percebe que o faz e se ressente quanto à reação em resposta. Um outro aluno, adulto, gemia alto, se esparramava na mesa, fazia caretas, se retorcia na cadeira durante meses, em protesto. Curioso, que nem mesmo meu filho, que tinha uns 11 anos, na época, agia desse modo tão infantil. Já vi alunos de segunda série do ensino fundamental fazê-lo. Acho que se eu estivesse tão insatisfeito num curso que não me prende socialmente a um diploma ou reconhecimento, sairia de imediato. Não vejo razão para continuar sem qualquer identificação com a disciplina ou com o professor, sobretudo se creio que há outros melhores do que ele. Mas a criatura se mantinha assim mesmo, inexplicavelmente, insistindo para que eu me adaptasse a ele, ainda que não houvesse um consenso na turma a respeito. Ainda que eu às vezes fizesse exatamente o que ele pedia. Nunca era suficiente. Depois de tudo significar problema ou insuficiência, a gente pára de prestar atenção na reclamação, pois não há o que fazer para mudar ou gerar uma percepção melhor, não importa o que se faça ou deixe de fazer.

Algumas escolas públicas vieram aos noticiários pelas agressões físicas que alunos fizeram contra professores. Pode ser que os professores tenham provocado algo, mas será que algo tão grave a ponto de receberem socos e pontapés de vários alunos? Isso sem contar os que precisam se submeter aos ditames do tráfico de drogas, na figura de alunos que têm vínculos com criminosos locais e que impõem suas vontades a despeito das propostas didáticas.

No lado do aluno, tenho várias situações que eu mesmo presenciei contra a atitude dos professores. Há arrogâncias extremas, daquelas em que os professores que são procurados para orientação interrompem as falas dos alunos, deixando-os em situação comprometedora, como se estivessem dizendo a maior das idiotices e que deveriam se envergonhar disso. Se ao menos tivessem escutado até o final… Se ao menos aproveitassem um eventual erro do aluno para levá-lo a uma reflexão sem deixá-lo em situação humilhante… Se ao menos pudessem se identificar com aquela dificuldade, pode ser uma que o próprio professor já teve, e se juntar solidariamente ao erro para chegar ao acerto… Se ao menos pudessem reconhecer que nem sempre o que defendem é a verdade absoluta e que é possível relativizar…

Isso me sugere que há um problema muito, muito grave acontecendo nas entrelinhas da sociedade e já está em ação faz décadas. Acho que está na hora de tentarmos descobrir o que está acontecendo de fato sem simplificações grosseiras do tipo: “ah, aluno é preguiçoso mesmo”, “os professores não sabem nada, não viram o vídeo tal no youtube”, “favelado é assim”, “teoria é um treco chato que não serve pra nada”, “filhinho de papai é assim”, “esse professor é escroto porque não fala o que eu quero ouvir”, “aluno de instituição particular é metido a besta”, “aluno de ensino público não tem futuro” e tantos outros estereótipos burros que nada ajudam a resolver.